O ABC da Viticultura Regenerativa

Segundo Renato Neves, Diretor de viticultura (porque a uva vem primeiro) e enologia da Herdade das Servas

Produção Integrada, Agricultura Biológica, Permacultura ou Biodinâmica são alguns dos sistemas de produção de alimentos. O mais recentemente conceito é a Agricultura Regenerativa, que o Regenerative Wine Fest celebra na Herdade das Servas. Vamos lá perceber ao detalhe do que estamos a falar.


O que é a Agricultura Regenerativa? A Agricultura Regenerativa (AR) é um processo evolutivo de produção de bens alimentares (vegetais e animais), que tem como pilar a regeneração dos solos e dos ecossistemas circundantes. Não obstante ser um conceito holístico, que envolve a dimensão ambiental, social e económica, o princípio da AR pode resumir-se desta forma: um solo nutrido e naturalmente equilibrado produz plantas e animais saudáveis; plantas e animais saudáveis não necessitam de um conjunto de produtos fitofarmacêuticos nocivos para o homem e para o ambiente. Donde, o primeiro objetivo da AR é devolver a vida ao solo e restaurar de forma equilibrada os ecossistemas.

A AR tem códigos universais? Não. Como se trata de um processo de recuperação da vida do solo, as realidades são diversas. De acordo com o Manifesto dos Climate Farmers, não existem abordagens dogmáticas ao nível das práticas agrícolas, mas sim processos que tenham em conta, para cada realidade, o fim em si mesmo que é a regeneração efetiva dos solos e dos ecossistemas envolventes. Ainda assim, quem pratica a AR deve apresentar resultados e indicadores das suas práticas e consequências ao nível ambiental, social e económico desde que iniciou o processo.

Que diferenças há entre Agricultura Biológica e Agricultura Regenerativa? A AR, ao contrário dos modos de produção que conhecemos, como o Bio e a ProDi (Produção Integrada), não procura conservar porque parte do princípio de que a conservação é uma questão do passado e que não foi devidamente tratada no tempo certo. Neste ponto, aquilo que estudamos e praticamos é a forma mais rápida possível de, em linha com os ciclos naturais, acelerar o processo de reposição dos ecossistemas e tornar a terra um planeta funcional novamente. A agricultura pode ser o nosso maior aliado na redução das concentrações de carbono atmosférico, através do processo da fotossíntese. Procura-se garantir que neste trilho de salvar o planeta consigamos aproveitar eficientemente todas as sinergias, entre animais, plantas, solo e atmosfera. Desta forma, iremos garantir a independência de adubos e fitofármacos, aumentar a resiliência das plantas, produzir alimentos nutricionalmente mais densos, restaurar os ecossistemas, e, no fim, trazer esse valor para as comunidades onde estamos inseridos. Esta preocupação vai muito mais além do que é exigido na Agricultura Biológica.

O que é a Viticultura Regenerativa (VR)? A VR segue a mesma filosofia que a AR. No caso da VR, tem por objetivo regenerar o solo e o ecossistema onde está instalada a vinha, por forma que as videiras saudáveis não tenham necessidade de ser tratadas com um conjunto de produtos químicos de síntese (adubos, fungicidas ou herbicidas).

Percebe-se a redução do impacto a VR ao nível ambiental, mas, quanto ao vinho em si, do ponto de vista sensorial, podemos falar de diferenças percecionadas por um consumidor? Não me parece que se possa dizer que um vinho de VR tem este ou aquele aroma específico, nem eu conheço alguém que faça VR à procura de um perfil organolético específico de vinho. Fazemos VR porque temos preocupações ambientais. Contudo, as uvas de VR não só estão isentas de resíduos de produtos fitofarmacêuticos como são originárias de um microbioma (conjunto de micro-organismos, como bactérias, fungos e vírus, que interagem e colaboram entre si para garantir as suas condições de sobrevivência) muito mais rico do que o de uma vinha convencional. E esse microbioma, que é único de vinha para vinha, acabará por originar uvas mais ricas em metabolitos secundários, como taninos, antocianinas e terpenos, o que se traduzirá em características organoléticas próprias. No fundo, cada microbioma dá um determinado perfil de uvas, e essas uvas diferenciadas dão-nos vinhos com a identidade de um lugar específico.

Se a Agricultura Biológica tem produtos homologados – que não são de síntese – para combater pragas, porque é que esses mesmos produtos não podem ser usados na VR? Não é que não possam. A VR pode usar cobre e enxofre, biofungicidas, bioinsecticidas, etc. Mas, lá está, o princípio da AR não é – como noutros modos de produção – tratar um qualquer problema quando ele aparece. O princípio é perceber por que razão uma determinada praga se instala numa cultura e, a partir da resposta, criar soluções para as plantas se defenderem de eventuais ataques. Podemos combater um determinado inseto com um produto químico natural, mas sabemos que esse mesmo produto não combate apenas uma determinada família de insetos. E, ao prejudicar outras famílias, outros insetos auxiliares, causa dano indesejável no ecossistema. Causa desequilíbrio.

Peguemos no caso da cigarrinha verde (um inseto), que tanto preocupa este ano viticultores. Como se combate? O fundamental é perceber por que razão a cigarrinha verde – que vem à procura da seiva das plantas como alimento e pica as folhas – ataca umas videiras e não ataca outras mesmo ao lado. Ora, isso acontece por causa de decisões humanas e dos consequentes desequilíbrios nutricionais existentes nas plantas. Se um produtor que vive da venda de uvas – e quanto mais produzir mais ganhará – quiser aumentar a sua produção, vai adubar à força toda a vinha com azoto.

O azoto aumenta a produção? Exato. E a dada altura, as videiras, muito vigorosas, têm tanto azoto que não o conseguem processar por diferentes razões. Esse azoto vai ficando acumulado nas folhas em forma de nitratos. E quem é que se aproveita do banquete ali à mão de semear? A cigarrinha-verde que, perante tal abundância de alimento, multiplica-se nas folhas. E quando damos por nós a vinha está completamente desfolhada.

E como é que o viticultor controla a praga? Como de costume. Espalha inseticida que, como é óbvio, mata a cigarrinha verde e um conjunto de insetos auxiliares. Resultado, temos desequilíbrios na vinha que foram provocados pelo homem na origem (querer muita produção) e desequilíbrios consequentes porque o tratamento dizima a cigarrinha e um conjunto de auxiliares importantes.

Então tudo se resume a procurar o equilíbrio perfeito? O mais perfeito possível não, porque a perfeição não existe. E o melhor exemplo para percebermos tudo isto é pensarmos numa floresta virgem. Aqui está tudo em equilíbrio e nunca alguém meteu lá um grama de adubo, não é? Aliás, não deixa de ser interessante observamos que nas vinhas abandonadas – e atenção que não estamos a defender as vinhas abandonadas – não há ataques de inúmeras pragas. E porquê? Porque sem a intervenção humana, a planta encontra as condições ideais para se defender de diferentes pragas. As pragas existem na mesma, mas consegue fazer-lhes frente. Não é curioso?

Então, mas se existem evidências nestas matérias, por que razão se continua a usar abordagens antigas? Bom, porque o sistema convencional aplica um conjunto de tratamentos porque sim, porque é tradição, porque é mais fácil e porque dá uma falsa sensação de segurança. Tudo isto também tem muito a ver com a cultura organizacional onde vivemos, em que a única coisa que interessa é tirar quantidade de uvas por hectare e não euros por hectare. É bem diferente. Um produtor clássico de uvas, quando vê um problema na vinha não quer tanto saber a origem do problema, até porque não se pode dar ao luxo de perder a produção. O que ele deseja, rapidamente e em força, é um produto para matar a praga. Basta conversar com agricultores mais antigos: estão sempre a perguntar se não há qualquer coisa nova para aplicar. Para matar ervas ou pragas, sentem-se felizes com produtos novos.

E assim voltamos à história dos desequilíbrios.... Pois. E as consequências são que, a dada altura, as videiras, não precisam de auto defender-se porque sabem que alguém – o homem – vai cuidar delas. Em certa medida, foi o que homem tornou as plantas malandras no combate às suas doenças. E daqui resultam três problemas: as consequências dos tratamentos para todo o ecossistema, o enfraquecimento dos mecanismos de defesa das plantas e o empobrecimento genético das plantas ao longo do tempo.

Isso faz lembrar a história dos antibióticos e os humanos? Nem mais. É como se nós, humanos, no início do outono/inverno, com a chegada das gripes, começássemos a tomar antibióticos por precaução. Aqui já conhecemos todos as consequências que tal prática tem nos nossos mecanismos de defesa, mas nunca pensamos que essa prática existe na produção de bens alimentares, vegetais ou animais. Nunca nos ocorre que nos alimentamos de sistemas que ainda trabalham assim.

Pode falar-se num valor padrão de aumento de matéria orgânica num solo a partir do momento em que se começa a praticar AR ou VR? Não, porque cada solo, ao nível dos perfis, é um solo. E cada solo tem uma história própria. Posso dizer que, aqui na Herdade das Servas, os aumentos de matéria orgânica têm sido, nos últimos três anos, entre 0,1 e 0,3 por cento ao ano.

A matéria orgânica está sempre na boca de um praticante de AR. Que formas de matéria orgânica temos? Temos a matéria orgânica viva (todos os seres vivos do planeta, animais e plantas); a matéria orgânica fresca (um corpo humano, um animal ou uma planta, que está morto, mas ainda não está em decomposição); a matéria orgânica intermédia (já em fase de decomposição) e o húmus, que é matéria orgânica decomposta e estável.

E o que se procura é o húmus? Sim, o húmus, que representa 85% da matéria orgânica do solo e é como que o arquivo de tudo o que aconteceu desde que o planeta existe. É o húmus que dá nutrientes às plantas.

Mas é a planta que alimenta os micróbios com açúcares, correto? Sim, é a chamada simbiose perfeita: a planta fornece açúcares pelas suas raízes, e os micróbios, alimentados por esses açúcares, transformam o húmus (libertando fósforo, azoto, potássio e outros micronutrientes) em alimento para as plantas. Um solo está equilibrado quando existe uma relação perfeita entre carbono (alimento) e azoto (energia).

Há quem faça preparados de azoto a partir de algas ou de vísceras de peixe. Na Herdade das Servas trabalha-se com lã de ovelha. Como é que isso funciona? Trata-se de uma extração alcalina com hidróxido de potássio numa concentração muito baixa. A lã entra nesta solução e dissolve-se num processo de infusão. Este líquido é depois espalhado na vinha como fonte de azoto orgânico.

E as bactérias lácteas. Que história é essa? É simples. As bactérias lácteas existem na natureza, no ar. Fazemos um pé de cuba com água de arroz, leite e açúcar para as atrair e alimentar, e obtemos um concentrado rico, que será depois pulverizado na vinha.

E isso serve para quê? Para ocupar espaço.

Perdão?! É assim: os micro-organismos patogénicos têm sempre vontade de se instalar nas folhas das videiras. E a ideia é, com as bactérias lácteas, ocupar o máximo espaço nas folhas. Quando chegarem os “micro-organismos maus”, a folha – ou a ‘casa’ – já está cheia. As bactérias lácteas não impendem a presença dos patogénicos, mas dificultam-lhes a vida. E, já agora, também usamos na vinha a saccharomyces cerevisae.

Mas essa é levedura que serve para fermentar os mostos.... Sim, mas não só. Repare, a saccharomyces cerevisae é um fungo, assim como o míldio e o oídio, apesar de muito diferentes. Quando uma planta é atacada por um fungo, produz metabolitos secundários para se defender. Reage de imediato. A saccharomyces cerevisae, espalhada na planta, não lhe causa problemas, mas ela reage na mesma para se defender.

Andam a treinar a videira para ir à guerra contra o míldio e o oídio, é isso? É!

Vocês, os regenerativos, quando partilham experiências no vosso grupo de WhastApp devem parecer uma reunião de druidas como encontramos nos livros do Asterix, certo? Ah, sobre isso tem de falar com o Francisco Pessoa, da Adega Mayor. Sabe como é que ele é tratado pela malta?

Não. Panoramix.

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